adeus, Jacarta


Já não estou na Indonésia como leitora de Português. Decidi voltar para Portugal e sinto-me em paz. Soube que, infelizmente, nenhum leitor foi contratado pelo Instituto Camões para me substituir. O que continuei da anterior leitora e o que comecei ficará pendente no espaço das coisas inacabadas; como um edifício embargado, como uma ponte sem todos os pilares e com as suas veias metálicas de fora do tabuleiro interrompido. Os cortes orçamentais em tempos de crise atingem sempre o essencial. Eis que não há dinheiro para manter leitores em países onde eles são necessários, desejados e procurados. Espero vir a continuar aqui projetos que iniciei lá, como a elaboração de um dicionário de indonésio-português, que ainda não existe. Aprendi a língua indonésia e aprendi a ser mais tolerante com as pessoas que são diferentes de mim. Compreendo melhor que nem todos se norteiam com os mesmos conceitos e pelos mesmos princípios que eu e que isso não tem nada de condenável ou de errado; que, em determinados contextos, o que precipitada e impacientemente consideramos falta de educação, incivismo ou barbárie é apenas diferença cultural – sendo nós, geralmente, demasiado arrogantes, limitados e judicativos para tentar abarcar padrões conceptuais diferentes dos nossos. Apesar de compreender, não tive forças para continuar a viver numa cidade – Jacarta – onde tudo era tão diferente da minha Lisboa, onde me sentia demasiado só, onde me custava respirar e onde não conseguia repousar. Já me aconteceu pensar que o bicho da viagem é um parasita que se hospedou em mim permanentemente. Não me quero armar em Gonçalo Cadilhe, mas talvez seja verdade. O que experiencio com as viagens, o que encontro em mim, o que descubro na vida e no mundo, o que me ensinam as pessoas com quem me cruzo – é sublime. Mas também estar aqui sentada ao computador, em Benfica onde moro agora, com a minha cadela roncando aconchegada aos meus pés, os meus livros perto de mim e a pastelaria ali em frente – também isto pode ser magnífico, e é. Sentir-me parte deste bairro e conversar amigavelmente com os vizinhos enquanto tomo a bica ou estou na fila do supermercado; sem cansaço, sem esforço, sem mal-entendidos.

Amir Hamzah


AMIR HAMZAH (escritor e poeta indonésio; 1911-1946).
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PADAMU JUA

Habis kikis
Segera cintaku hilang terbang
Pulang kembali aku padamu
Seperti dahulu
Kaulah kandil kemerlap
Pelita jendela di malam gelap
Melambai pulang perlahan
Sabar, setia selalu

Satu kekasihku
Aku manusia
Rindu rasa
Rindu rupa
Di mana engkau
Rupa tiada
Suara sayup
Hanya kata merangkai hati

Engkau cemburu
Engkau ganas
Mangsa aku dalam cakarmu
Bertukar tangkap dengan lepas
Nanar aku, gila sasar
Sayang berulang padamu jua
Engkau pelik menarik ingin
Serupa dara dibalik tirai
Kasihmu sunyi

Menunggu seorang diri
Lalu waktu – bukan giliranku
Mati hari – bukan kawanku.
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SÓ PARA TI

Completamente perdido
Todo o meu amor se evaporou
E de novo regresso para os teus braços
Como sempre

Tu és uma candeia que brilha
Uma luz à janela, na noite escura
Que me acena docemente o regresso a casa
Paciente, sempre fiel

Minha única amada:
Eu sou humano
Desejo perder-me nos sentidos
Desejo iludir-me com as formas

Mas onde estás tu
Não há forma
O som é vago
Só as palavras guiam o coração

Tu és ciumenta
Tu és feroz
Sou uma preia nas tuas garras
Ora preso ora solto

Atordoado, desesperado
Pobre de mim, só para ti volto sempre
Mas tu és difícil de desejar
Como uma donzela por detrás de uma cortina

O teu amor é calmo

Espero, sozinho
O tempo passa – mas não perco a minha vez
O dia morre – mas não a minha companheira

Chairil Anwar



CHAIRIL ANWAR (poeta e escritor indonésio; 1922-1949).
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AKU


Kalau sampai waktuku
'Ku mau tak seorang kan merayu
Tidak juga kau

Tak perlu sedu sedan itu

Aku ini binatang jalang
Dari kumpulannya terbuang

Biar peluru menembus kulitku
Aku tetap meradang menerjang

Luka dan bisa kubawa berlari
Berlari
Hingga hilang pedih peri

Dan aku akan lebih tidak perduli

Aku mau hidup seribu tahun lagi

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EU

 
Quando chegar a minha hora
Não quero que ninguém me cative
Nem mesmo tu

 
Não preciso desses soluços

 
Eu sou este animal selvagem
Do seu grupo excluído

 
Deixa que a bala irrompa pela minha pele
Mesmo assim escoicearei enfurecido

 
A ferida e o veneno carregarei, correndo
Correndo
Até que desapareça a dor

 
E não me vou importar mais

 
Quero viver ainda outros mil anos

Ibu Kartini



RADEN AJENG KARTINI, heroína nacional indonésia, pioneira na defesa dos direitos humanos das mulheres na Indonésia; 1879-1904. Hoje, 21 de Abril, é o dia do seu nascimento, considerado um dia festivo na Indonésia - o "Dia de Kartini".
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"Aku tidak akan pernah, tidak akan pernah bisa mencintai. Bagiku, untuk mencintai, pertama kali kita harus bisa menghargai pasangan kita. Dan itu tidak kudapatkan dari seorang pemuda Jawa. Bagaimana aku bisa menghargai seorang laki-laki yang sudah menikah dan sudah menjadi seorang Ayah? yang hanya karena dia sudah bosan dengan istrinya yang lama, dapat membawa perempuan lain ke rumah dan mangawini
nya? Ini sah menurut hukum Islam. Kalau seperti ini, siapa yang tidak mau melakukannya? Mengapa tidak? Ini bukan kesalahan, tindak kejahatan atau skandal; Hukum Islam mengijinkan laki-laki beristri empat sekaligus. Meski banyak orang mengatakan ini bukan dosa, tetapi aku, selama-lamanya akan tetap menganggap ini sebagai sebuah dosa. Semua perbuatan yang menyebabkan sesama manusia menderita, saya anggap sebagai dosa. Dosa ialah menyakiti makhluk lain; manusia atau binatang. [...]"
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"Eu nunca, nunca me hei-de apaixonar. Para amar, deve haver antes respeito, segundo os meus princípios; eu não posso respeitar os homens javaneses. Como posso eu respeitar quem é casado e pai, quem, quando já usufruiu o que tinha a usufruir de uma mulher e dos seus filhos, leva outra mulher para casa, e é, segundo a lei do Islão, legalmente casado com ela? E quem não faz isso? E porque não fazê-lo? Não é pecado, afinal, e muito menos um escândalo. A lei islâmica permite que um homem tenha quatro mulheres ao mesmo tempo. E ainda que a lei e doutrina islâmicas defendam mil vezes que isso não é pecado, eu considerarei para sempre um pecado. Eu considero que tudo o que cause infelicidade a um semelhante é pecado. Pecado é provocar dor a outro, seja homem ou animal. E podes imaginar a dor infernal que uma mulher sentirá ao ver o seu marido chegar a casa com outra mulher, que ela tem que reconhecer como sua esposa oficial? Ele pode torturá-la até à morte, maltratá-la como queira. Tudo para o homem, e nada para a mulher – é a nossa lei e costume. [...]"

in «Surat Kartini kepada Stella, 6 Nopember 1899» (Carta de Kartini para Stella, 6 de novembro de 1899).

não sabias que agora está na moda parecer totó?

O estilo é um fenómeno que me intriga. Segundo os cânones atuais, eu não tenho nem nunca tive estilo. E bem sei que as pessoas acham que me visto mal. Eu costumava associar estilo a uma forma própria de estar na vida. Recorrendo ao dicionário velhote que me tem acompanhado no meu êxodo, estilo é uma “maneira especial de cada um se exprimir, falando ou escrevendo” (Francisco Torrinha). Hoje em dia, parece-me que o estilo se confunde com a moda e, paradoxalmente, tende a ganhar um sentido oposto, para “maneira comum de todos se exprimirem”. Há quem diga que mesmo assim o estilo não deixa de ser especial, visto que há uma certa extravagância, mais ou menos discreta (sim, porque há extravagância discreta, que é aquela que sobressai não do todo, mas dos pormenores), que lhe é intrínseca. Mas a verdade é que ter uma maneira especial de expressão não envolve necessariamente extravagância, envolve apenas autonomia e individualidade – o que em certos casos pode ser extravagante, por colidir com a opinião geral ou os critérios das massas. Dizia eu que, segundo os cânones atuais (e muito provavelmente segundo quaisquer cânones, de que lugar ou tempo sejam, até do planeta Marte do século XXX), eu não tenho nem nunca tive estilo. Já me apetece agora vitimizar-me um pouco e recitar em coro e voz chorosa com Álvaro de Campos “Serei sempre a que não nasceu para isso; Serei sempre só a que tinha qualidades; Serei sempre a que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada." Digo-vos que bem me lembro que aos 15 anos, já as minhas colegas se pintavam e iam ao salão de cabeleireiro, “roubava” à minha avó blusas de malha velhas e pretas (que ela tinha aos montes; faziam parte do vestuário quotidiano de viúva) para levar para a escola, e lá ia com andar felino e crente de que tresandava a estilo. E como me recordo do frenesi que senti ao colocar pela primeira vez as calças de ganga gastas e larguíssimas do meu tio Téo, que já não lhe cabiam, e de durante anos as vestir com orgulho de rainha. Mesmo assim, havia rapazes que me achavam gira! O desconcerto do mundo! Ainda agora, o meu par de botas favorito, com que escorrego aí pelos lameiros do mundo, encontrei-o eu num saco enorme que uma amiga da minha mãe lhe pediu para pôr num contentor para recolha de roupa usada.


Com a excitação que muitas meninas devem sentir quando vão às compras, abri vorazmente o saco e encontrei umas belíssimas botas castanhas Timberland, de feitio que já não se encontra, com estrias cheias de história pela sua pele curtida e a sensualidade da meia-idade. Estas sim, são botas que falam, e agora estão a envelhecer comigo.
Bom, mas tudo isto é apenas introdução; o que quero é partilhar convosco o que tenho vindo a encontrar na Indonésia. Aqui, está na moda ter estilo de totó (geek style!). Alunas minhas que nunca tinha visto com óculos, começaram repentinamente a usar óculos – mas não uns óculos quaisquer, não, óculos enormes, com armação bem grossa, daqueles que associamos ao pateta sobredotado da turma. E não fica por aqui. De repente, toda a gente decidiu endireitar os dentes e usar aparelho; e quando os meus alunos se riem de alguma das minhas piadas estúpidas, lá me perco, inebriada, por entre aquele mar de metal colorido que lhes escorre dos sorrisos – sim, porque não usam uns aparelhos quaisquer, usam-nos coloridos: rosa-choque, verde-alface, azul-turquesa! Uma aluna minha chegou a dizer-me que agora apreciam a beleza dos rapazes pelo feitio e cor do aparelho que usam nos dentes! E assim, o estilo desentendido dos totós, distraídos, intelectuais introvertidos - passou a ser moda, fazendo capa de revista e sendo considerado extremamente sedutor. E quem usa óculos com armação grossa da testa aos lábios e aparelho bastante saliente de cor vistosa tem mesmo, mas mesmo, muito estilo! Quem fica a ganhar são os verdadeiros totós, que se veem promovidos a conselheiros de moda.


Os Homens das Obras


Obras em Kuningan, Jacarta.
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São 23:25. É dia 22 de fevereiro de 2011. Barulho de obras. Há várias obras a decorrer à volta da área onde vivo, aqui em Jacarta. Oiço-os pela noite fora, esses homens de berbequim gigante entre os braços. Nas noites piores, de insónia, oiço-os até horas impossíveis, o que me leva a crer que trabalham 24 horas por dia, com pequenos intervalos interpostos. Como é possível gostar de um país onde se permite explorar desta forma o outro? E isto aos olhos e aos ouvidos de toda a gente, que quanto muito se queixam por si mesmas, por não conseguirem dormir e pelo desconforto de testemunhar tal barbaridade, e não por refletirem na pesada condição dos homens subalimentados e indefesos que esticam os seus músculos indóceis e suam as suas faces sob grandes óculos de segurança. Estou cansada de um mundo onde as pessoas são apaixonadas por si próprias. Apesar de tudo, aqui é mais raro de encontrar, excluindo os ocidentais – que são extremamente vaidosos, num lugar onde é tão fácil ser rico e exibir riqueza e “status”. Os indonésios, no geral, são pobres, e têm famílias tão grandes e tantos amigos, vizinhos – têm una notória inclinação para a empatia, para uma forma de pensar holística, de interdependência entre os seres, em detrimento do espírito competitivo e individualista do homem moderno ocidental, capitalista. Esta cidade cansa-me, este país cansa-me, e até estas pessoas me cansam por vezes – mas não há dúvida de que me estão a ensinar – na sua linguagem silenciosa, tímida e difícil – o que é e como é viver entre os demais humanos, sem a privacidade e a reserva que me caracterizam.

uma recordação



Estou aqui há tanto pouco tempo que até não dói. Nada dói, nem nunca, quando sabemos o que não queremos. As lições da vida são sempre sobre o que devemos querer. Como se só o saber o que se quer – valesse. Mas eu cá – eu, muito eu – eu cá considero que ter momentos em que sabemos o que não queremos – esses momentos são os mais valiosos da vida.

Moro em Jacarta, estou na varanda num 25.º andar. Sinto-me contente por não estar a maçar ninguém. Por ser o que se considera uma pessoa autónoma. Sem pesar sobre outros. Sem pedir dinheiro emprestado, ou ter um discurso depressivo sobre a vida. Considero-me uma pessoa com quem os outros terão gosto em estar e falar.

Olho lá para fora. Há estes arranha-céus, que foram feitos só para alguns. Durante o meu dia, escorro por ruas repletas de gente descalça, que não entra habitualmente em arranha-céus. É com eles que vou, de mota, por aí. Levam-me para onde eu peço para ir, por pouco dinheiro. E sentem amizade por mim. São simpáticos. E até tirámos fotografias juntos.

Até parece que quando falo assim destas pessoas com que me cruzei na vida, até parece que estou a minimizá-los, se é que esse verbo existe. Mas não, não estou. Eu só não sei como viver sem pensar neles.

Peçam-me uma história. Eu conto. Há muitos anos atrás, estava eu em curso de verão em Perugia, Itália.  Talvez uns 10 anos atrás. Fui a um restaurante chinês com o meu namorado, que era o Luís – o meu único namorado a sério na verdade – e pedíamos umas coisas para comer. Eu falava com a menina chinesa, entrelaçávamos italiano com inglês – uma bela renda mestiça, de tema gastronómico. O Luís insistia: pede arroz chau-chau. E eu pedi: arroz chau-chau. A menina riu e riu e riu e riu. [ Desde quando é que isto poderia acontecer noutros restaurantes? Seria proibidíssimo! ] «”Arroz chau-chau?!?” O que é isso?» Perguntou ela. (eu tinha pedido “riso chau-chau”) Explicámos que em Portugal, nos restaurantes chineses, comíamos arroz chau-chau, arroz frito com outras coisas, como ervilhas, ovo, chouriço... sabemos lá! áh o nosso hábito! A menina esbugalhou os olhos e disse... “Aqui não temos arroz chau-chau, mas vamos tentar fazer algo parecido”.

E lá nos trouxeram uma travessa de arroz frito com ovo e pedaços de fiambre, enfim, execrável, como disse o Luís pouco depois, ainda que o devorando por delicadeza. E foi aí que descobri que os restaurantes chineses não eram todos iguais. E descobri também a notável flexibilidade dos chineses, para se adaptarem aos nossos caprichos... (“Não temos, mas segundo a vossa descrição, tentaremos fazê-lo”...)

No fim da refeição, a menina veio ter comigo com uma estatueta, de um chinês qualquer – não sei. Ela disse-me “Isto é para ti, porque nos ensinaste o arroz chau-chau”. :-) A verdade é que a estatueta ficou em Perugia, no quartinho que eu tinha alugado, porque não tinha espaço na mala para a levar comigo. E por lá estará, assombrando jovens estudantes de italiano; e a minha memória.

cair e ser triturado ou morrer eletrocutado - qual o melhor?

Ainda que as estações de comboio ostentem estes cartazes deveras expressivos, alertando os passageiros para os perigos de ir no teto do veículo...



... eles não se impressionam e continuam a subir para a parte descapotável e mais espaçosa do comboio.


Isto acontece principalmente nas horas de ponta, quando os comboios vão apinhados de gente. Há acidentes quase diariamente, muitos mortais.






Já me aconteceu ver jovens a dormir lá em cima, a ler ou a tocar guitarra. Já me aconteceu ver gente a caminhar lá em cima, com o comboio em andamento. Já me aconteceu ver miúdos pequenos a rir e a saltar lá em cima. Felizmente, nunca me aconteceu assistir a saltos mortais. Por enquanto.

Tugu


A comunidade de Tugu vive numa aldeia, a nordeste de Jacarta, chamada Tugu. Esta zona de Jacarta é muito caótica, barulhenta e poluída devido à proximidade do porto de Tanjung Priok. Este porto é o principal do país, é enorme, com os seus cerca de 430 hectares, e tem um tráfego incessante. As estradas desta área de Jacarta têm um trânsito sempre congestionado pelos inúmeros camiões de carga que vão e vêm do porto. Assim, podem imaginar que não é muito fácil nem agradável o caminho até Tugu! No entanto, quando avistamos o pequeno cemitério da aldeia, começamos a relaxar um pouco. Saindo da estrada infernal e transpondo o portão de entrada, soltamos enfim um suspiro de alívio e de prazer: chegámos a Tugu. Fico sempre admirada com o aconchego, a limpeza e o encanto daquele lugarejo, afinal tão próximo da estrada infernal, mas ao mesmo tempo tão distante. Esquecemo-nos completamente dos camiões, do monóxido de carbono e do bulício enervante de onde viemos e entramos num mundinho à parte, com uma bela igreja branca do século XVII, encimada por telhas vermelhas, ao lado de um cemitério bem cuidado, com uma escola e uma biblioteca (construída com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian), um jardim e muitas árvores de fruto.


A Igreja de Tugu ou Gereja Tugu (a palavra indonésia gereja vem do português).

Cemitério de Tugu.
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Continuando mais para Este, mais para dentro, atravessamos o rio Cakung e vamos dar à aldeia propriamente dita, formada por ruelas retas e perpendiculares onde encontramos pequenas moradias com alpendres e vasinhos com flores. Nesta aldeia não vive apenas a comunidade de Tugu, vivem também indonésios de outras partes do arquipélago: das ilhas Celebes, das ilhas Molucas ou doutras regiões de Java.

Neste momento, vocês devem estar a perguntar-se o que é que a comunidade de Tugu terá de especial para eu perder tanto tempo e palavras a descrever a sua aldeia...

Há várias versões da origem da comunidade de Tugu. A mais comummente aceite é a de que se trata de uma comunidade de descendentes de mestiços Portugueses e de antigos escravos de Portugueses: um grupo de Mardjikers que habitava a então chamada Batavia (nome por que era conhecida Jacarta nos tempos da administração holandesa).

Para compreender quem eram os Mardjikers, é preciso um pouco mais de História.

Jacarta foi conquistada pelos Holandeses em 1619 e grande parte da sua população não era indígena. Inicialmente, vieram habitantes da costa de Coromandel e da costa do Malabar na Índia, recrutados pelos Holandeses para trabalhar como soldados do exército colonial e como guardas para manter a paz em Batavia, impedindo revoltas locais. Estes homens eram apelidados de Mardjikers (termo do sânscrito atribuído no período Hindu a religiosos ou monges que não pagavam impostos), pois estavam isentos de pagar impostos. Mais tarde, surgiram escravos oriundos das ilhas Molucas, que trabalhavam nos navios ou na construção de fortes, estradas e outros projetos. Por bom comportamento ou pelos bons serviços prestados, estes escravos eram muitas vezes libertados – e passavam a ser chamados Mardjikers também, não porque não pagassem impostos, mas porque eram livres. Finalmente, depois do declínio do império colonial português no Sudeste Asiático em meados do século XVII, chegaram comerciantes, artesãos e aventureiros oriundos de Malaca, Ceilão, Cochim e Calecute – estes estrangeiros, com mais talento, conhecimento e experiência no convívio com os Europeus, tornaram-se funcionários públicos, proprietários de lojas e empregados em entrepostos comerciais. Socialmente, misturavam-se com os Mardjikers. Estas três levas de emigrantes acabaram por se fundir numa comunidade mais ou menos homogénea durante o século XVII. Eram os chamados “Portugueses Negros”. Esta denominação vem do facto de esta população ser maioritariamente de pele mais escura do que os malaios, por fazerem parte de comunidades de "cafres", ou seja, africanos da costa oriental levados, primeiramente por portugueses e mais tarde por britânicos, para as costas da Índia. O que é que esta gente – de países e regiões diferentes; de grupos sociais, culturais e profissionais diferentes – tinha em comum? A língua e a religião.

Todas estas pessoas tinham vindo de regiões onde Portugal estivera presente, quer como potência colonizadora quer apenas como agente comercial, tendo sofrido a influência da língua, religião e cultura portuguesas. Todas elas adotaram o Português como língua de comunicação e durante quase dois séculos o Português foi efetivamente a língua de comunicação em Batavia: entre Europeus e nativos de diferentes países e mesmo entre os próprios Asiáticos que vinham dos seus diferentes países para Batávia. Ao contrário do que se imaginaria, a religião dos “Portugueses Negros” não era o catolicismo. Todos eles foram convertidos ao Calvinismo em Batávia, devido às imposições rígidas dos Holandeses – que, no entanto, não conseguiram converter-lhes a língua.

Os Tugu descendem de um grupo de Mardjikers a quem os Holandeses ofereceram um terreno (onde fica a aldeia de Tugu), em 1661, pelos bons serviços prestados à Companhia das Índias Orientais.

Apesar de todas as vicissitudes, este pequenino enclave manteve vivo um crioulo de base lexical portuguesa, o Papiá Tugu, até 1978 – ano em que morreu Jacob Quiko, o então chefe da comunidade e único falante da língua. Atualmente, esse crioulo sobrevive apenas nas letras das canções de Keroncong que eles cantam.


Andre Michiels, o chefe da comunidade, com crianças de Tugu - cantando e tocando Keroncong.
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O Keroncong é um tipo de música que nasceu no seio desta comunidade e que é hoje em dia considerado um tipo de música nacional de grande popularidade. A sua origem remonta ao século XVI, quando marinheiros portugueses trouxeram com eles a sua música e instrumentos ao arquipélago indonésio.

No entanto, é também possível sentir uns resquícios desse belíssimo crioulo, muito semelhante àquele falado em Malaca, em algumas expressões quotidianas que ficaram cristalizadas e que os membros da comunidade ainda usam.

Os Tugu são protestantes. Fazem questão de assumir e exibir a sua diferença relativamente aos “outros”. Orgulham-se da sua ascendência portuguesa, gostam de beber vinho, de comer carne de porco, dançam aos pares, falam com brio da sua fisionomia europeia e dos seus narizes longos, riem-se desbragadamente e dão-se a comentários brejeiros (o que contrasta imenso com a cultura javanesa que preza a moderação e a cerimónia) e adoram conviver, cantar e dançar.

Em 2008, a então Leitora do Instituto Camões em Jacarta, Maria Emília Irmler, criou – com a assistência de uma jovem indonésia que aprendera danças tradicionais portuguesas em Macau, a Pipita – um grupo de danças tradicionais portuguesas constituído por membros da comunidade. São os Romeiros de Tugu. *


Os Romeiros de Tugu no Navio Sagres.
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Finalizemos, então, com uma música Keroncong chamada “Kafrinju”, que fala sobre uma mestiça portuguesa de Goa, cantada em crioulo de Tugu pelo chefe da comunidade: Andre Michiels. O termo "Cafrinho" vem de "cafre", que mencionei acima. A Cafrinha é, assim, uma forma musical comum a várias comunidades luso-asiáticas desde o Sri-Lanka, à Malásia e à Indonésia, que remonta ao folclore crioulo português de África, que chegou à Ásia a bordo dos navios portugueses. Reparem na execução instrumental desta cantiga kafrinha da comunidade de Tugu, que é magnífica - autêntico jazz crioulo!


 Deixo-vos, também, um gostinho do crioulo Tugu com a belíssima letra da canção Keroncong  - “Moresco”, provavelmente uma canção popular entre os marinheiros portugueses do século XVI.


Moresco


Anda-anda na bordi di mare
Mienj korsan nunka contenti
Io buska ja mienja amada
Nunka sabe ela já undi

Io buska mienja amada
Ia mienja noiba mienja amoor
Io buska até tuda banda
Isti corsan teeng tantu door

Io prunta fula e strella
Bosoter munka ola un tenti
Fula e strella nunka resposta
Mienj korsan nunka kontenti

O, bie aki mienja amada
Mienja noiba, o moler bonito
Io espara con esparansa
E canta contigo Moresco

Anda, anda pela borda do mar
O meu coração nunca está contente
Eu busco a minha amada
Nunca sei onde ela está

Eu busco a minha amada
A minha noiva, o meu amor
Eu busco-a por todo o lado
Este coração tem tanta dor

Eu pergunto a uma flor e a uma estrela
“Vocês viram-na?”
A flor e a estrela nunca respondem
O meu coração nunca está contente

Ó, vem aqui minha amada
Minha noiva, ó mulher bonita
Eu espero-te na esperança
De cantar contigo o Moresco

a casa do canal

.

No início, perdia-me por Jacarta. Fazia o impossível – caminhava a pé pelas largas e longas avenidas: tropeçava nos buracos dos passeios, tossia os vapores das motas, olhava o mapa na esperança de estar perto do lugar que me tinha proposto como meta para esse dia – um parque, um centro comercial, um museu, uma igreja – e continuava por ali fora, para pasmo dos locais com que me cruzava. Já me deixei disso há algum tempo. É muito cansativo, traz-me novos pontos negros à pele e inquieta-me. Ora, eu caminho para relaxar, não para me enervar. Aconteceu-me explorar todas as linhas do autocarro Transjakarta. Um autocarro sofisticado, com ar condicionado e a sua via particular na estrada, o que o impede de ficar encalacrado no tráfego.



Ancol, Gambir, Blok M, Ragunan, Kota – you name it. Cheguei a todo o lado de Transjakarta. Às vezes, esperava horas até conseguir entrar num autocarro, devido ao excesso de gente que se acotovelava na fila desordenada e larga; pela primeira vez senti o que era ser levada pela corrente num mar de gente. Lembro-me de uma noite, na paragem de Tosari, em que me sentindo arrastada por uma turba impaciente e suada e temendo cair no intervalo que há entre a plataforma e a entrada do autocarro gritei “Pelan-pelan! Hati-hati!” (“Devagar! Cuidado!”), fazendo as pessoas abrandar e desatar a rir às gargalhadas. Eu também me ri, fui a rir até casa e ainda agora me rio sozinha quando me lembro. Mas é verdade que nessa altura tinha mais sentido de humor e que agora tenho muito pouco. Agora acontece-me bufar, resmungar entre dentes e sentir que as pessoas não são pessoas mas obstáculos que me impedem de viver como eu quero. Notoriamente, eu ando errada.

Caminhando pelas avenidas veem-se coisas interessantes. Hoje saí de manhã para comprar umas prendas de Natal e, no caminho entre a paragem de Dukuh Atas e o Plaza Indonesia,  passo na parte de cima de um viaduto. Olhando para o lado, reparei num estendal de roupa, entre o canal cheio de lixo e a estrada, naquele cantinho sob a ponte. Debruçando-me um pouco e olhando mais para dentro, pude ver uma casinha improvisada de cimento com telhado de colmo. Senti uma paz enorme olhando as roupas esvoaçando entre os fumos da cidade, com um escasso caniçal de bambus por trás; fazendo um zoom, era mesmo possível esquecer a paisagem urbana e fria circundante, e sentir o calor da pacatez no campo.



Puxei da máquina fotográfica e segundos depois surgiu uma velhota. A dona da casa. Uma senhora que mora debaixo da ponte em Jacarta, entre um canal de água suja e uma estrada de asfalto sujo, mas que mantém o terreno à volta da casa varrido e limpo, a roupa lavada e as canas de bambu bem tratadas. Esta gente que veio das aldeias nos campos de Java e de outras ilhas para a grande metrópole em busca de trabalho, e que vive agora entre os excrementos da grande cidade, percorrendo-lhe o corpo áspero sem sapatos.
Pedem esmola,
vendem comida nos seus carrinhos de mão,



vendem jornais balões livros águas brinquedos gelados amendoins nas estradas ao semáforo encarnado,
são taxistas de mota,



 escolhem o lixo das ruas para o separar e ganhar uns trocos em postos de reciclagem,



desentopem os canais em período de chuvas – quando transbordam e provocam inundações devido à acumulação de lixo –,
ajudam a controlar o tráfego;
as crianças alugam guarda-chuvas gigantes quando cai uma enxurrada de chuva inesperada e correm descalças e semi-nuas pela lava fresca e benéfica da água milagreira que lhes trará umas notas quentes de rupias.
O povo que habita as ruas de Jacarta.

meias palavras bastam

num mercado flutuante da Tailândia

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o que é que podemos saber? o quê? se cada vez que buscamos confirmação de algo só nos surgem as meias palavras de sempre. será que alguém sabe dizer o que pensa, o que quer e o que sente? a relação humana é tão conflituosa e nunca será demais dizer que a culpa é da linguagem. como se pode amar verdadeiramente, enquanto dependendo da linguagem? só mesmo no estado bestial poderemos amar. eu tento encontrar as palavras para o que estou a sentir, para que vos possa explicar, para que me entendam, para que haja uma ligação entre nós, e me admirem, e prezem os meus posts e o meu blog e eu na totalidade. e haja a mínima concorrência de sensações ou sentimentos na palavra escrita e já vocês dizem que o que eu escrevo é belo. incrível como a beleza da literatura reside tão somente na psicologia. numa lucidez muito incomum da hermenêutica humana, que nos leva a chorar, exclamar, descansar, odiar enquanto lemos. que complicação, estes cérebros! mas que cobardia ignorá-los! e o meio termo entre a cobardia e a clarividência será esta vida medíocre que é a  de todos nós, enredados pelos joelhos numa telenovela ou tragédia grega onde nunca dizemos o que queremos dizer e muito menos o que de facto sentimos porque nem sequer compreendemos as nossas próprias perplexidades. mas ser clarividente deve ser um fardo, se não formos Buda. estar aqui ou não estar, falar ou não falar, não compreender, tentar compreender ou compreender, amar, gostar, não gostar, odiar, cantar, esquecer, dedilhar, beber, correr, nadar, olhar pelas frestas de um mar sempre tão rugoso, como eu gosto, mar bravio. e agora olho para trás e o que é que eu escrevi que faça sentido? muito pouco, e no entanto entreguei-me à tela como raras vezes sucede. há uma ligação entre nós e uma sabedoria transcendente, e quando desligamos e deixamos os nossos dedos viver como debulhadoras entre o trigo eles tornam-se antenas poderosas que nos transmitem as imagens, toscamente dedilhadas, do infinito e da sabedoria iluminada. eles vão sem pedir licença, sem cerimónias nem formalidades, na sua carne flexível e muda, até aos segredos e descrevem-nos usando o nosso parco intelecto. há palavras que são escritas sem nos apercebermos, e essas vêm diretamente do divino. viver entre os humanos não nos deixa evoluir muito, e eu tenho de olhar para os meus dedos quotidianamente para relembrar que há antenas poderosas a ligar-me a um universo maior do que o dicionário do Houaiss, onde posso descansar e ao mesmo tempo traduzir este labor do dia-a-dia e escrevê-lo para um ninguém que é ao mesmo tempo todas as pessoas que entrem na casa http://dariportugisdiindonesia.blogspot.pt. eu bem tento compreender, eu tento, e tento entender as meias palavras das pessoas, os sorrisos, os olhares e às vezes até as palavras supostamente diretas – e não entendo nada. há uma escuridão maior do que a noite num cemitério de aldeia, eu não vejo, tateio e não vejo, e quando tento ver sempre alguém volta àquelas palavras que me fazem ser estúpida de novo, quando me arrojo alguém sempre me cala e me faz voltar à realidade das meias palavras, as palavras simpáticas, diplomáticas, leves, compreensíveis, fáceis, sensibilonas, apaziguadoras, falsas da nossa vida. como é que me arranco deste estado e não deixo de ser responsável – é a minha grande questão. nos entretantos, vou regozijando nas meias palavras, porque as há reais ou literárias, e capto a transmissão de Saramago: Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.

Bali

Em Bali. Sim.
Já nem sei o que sinto. Estou relaxada e sabe-me bem viajar pela Indonésia, finalmente; mas sinto-me desligada de tudo, voluntariamente à  superfície das coisas - sem as aprofundar, como se à partida já soubesse que tudo isto cairá num grande esquecimento.
Bali é uma ilha muito verde, no seu misto de floresta exuberante com terra lavrada - arrozais extensos, por vezes em socalcos como as nossas vinhas do Douro, e cinematográficos.


Cada pequena vila tem vários templos, porque é tradição cada família ter o seu templo privado. Vemos, assim, templos de metro a metro, uns mais humildes outros mais sumptuosos, na sua pedra escura e imponente, com os seus altares que lembram pequenos espigueiros. Entrei num templo e recordei o Soajo, com a sua mítica rocha redonda povoada de espigueiros, que são como guerreiros contra o céu escuro.



Comparando com os templos hindus que vi na Tailândia, estes são bem mais simples, sem cores, austeros, como a governanta solteira de 45 anos de uma casa muito grande. Há um estrado, onde costuma estar quem tem o poder para ali se sentar, recitando orações e gerindo as oferendas. No chão, flores secando e com as quais se fará incenso.


As pessoas vivem tanto dos rituais, das pequenas atividades do templo - moldar as bases das oferendas em folha de bananeira seca;


colher as flores e deitá-las no chão para a secagem como às notas numa pauta de música; restaurar os altares; preparar a refeição comunitária, todos juntos...


Os homens usam o cabelo comprido apanhado num afirmativo rabo-de-cavalo, ou um modesto turbante na cabeça ou um lenço enrolado em jeito de fita sobre a testa. Lembram samurais. Algumas mulheres carregam sobre a cabeça pirâmides de flores e frutas, como a Carmen Miranda.


Será o afluxo constante e regular de turistas que provoca esta conservação das tradições? Será show-off?
Não sei, nem me apetece pensar sobre isso. Este é um bom sítio para não pensar, partilhando da alegria geral.

solidão reconfortante



Hoje fui jantar a um restaurante indiano e senti-me tão bem. Descalcei-me, comi nan e paneer, bebi uma cerveja. Na televisão passava um canal indiano. Olhava distraída. Ia escrevinhando no diário.
Em flash, à minha mente - certos quadros do Hopper. Sempre gostei dele e não acho os quadros tristes.
Há qualquer coisa de comovente e de acolhedor na solidão nestes lugares, como o restaurante Koh-e-noor onde eu estava; de profundo mesmo. Como se compreendesse desta forma tão simples o que é a interdependência entre todos os seres e em que consiste esse fio frágil e inquientante de amor e entendimento entre a gente.
Estava sozinha num restaurante quase vazio; quatro indianos numa mesa, um casal noutra e uma família numa outra mesa grande. Essas pessoas, pelo simples facto de estarem ali, de existirem na mesma vida que eu e coincidirem comigo num determinado lugar e momento do mundo, fizeram-me feliz e eu senti-as como membros da minha família. Às vezes fechava os olhos e agradecia pela vida, pela nossa vida, pelo paneer quente e macio que dançava entre os meus dentes, pela cerveja que enche e alegra, pela televisão que distrai, pela surpresa de sentir e pensar estas coisas que não cabem no meu diário nem nesta carta e para as quais não encontro sempre as palavras certas ou quaisquer palavras.

O Fruto do Dragão ou Pitaia


Eis outro fruto exótico que encontro no supermercado em frente da minha casa. Chama-se "dragon fruit" e tem estas cor e feitio que lembram, de facto, ou o lombo de um dragão ou as misteriosas chamas que aquele expele quando está irritado.
Este fruto nasce de uma espécie de cacto.

É extremamente generoso. Penetrando-o com a faca afiada e fazendo-lhe uma incisão de 360 graus, sentimos uma mole polpa, depois de perfurada a cútis espessa mas dócil do fruto-animal. Tem uma carne abundante, branca e crivada de bandos de sementes pretas que se prestam agradavelmente ao nosso palato.

Tem um sabor excessivamente doce (para as minhas papilas gustativas), que de tão doce até se torna de final amargo. Em suma, não é um fruto das minhas preferências, em termos palatais, mas em termos estéticos preenche todos os requisitos da minha sensibilidade!

Desfrutem!

Melancia amarela indonésia para a Anabela



Queridíssima Anabela, minha mais-que-amiga,


eis a prometida melancia amarela, directa do supermercado em frente da minha casa, e ofereço-ta como prenda de aniversário tardia ou como prenda de Natal prematura - como queiras.


Desfruta! ;-P

Umas horas de Singapura

No dia 24 de junho de 2010 parti de Jacarta para Singapura para uns dias de férias. Hoje é dia 27 de junho. Ainda cá estou e estarei até 29 de junho.
Estou a gostar tanto desta cidade-país. Não a quero esquecer. Pressinto que não regressarei aqui, por isso escrevo. Escrevo.
A Luísa esteve comigo até hoje. Partiu há umas horas. Agora estou sozinha.
O hotel onde estou fica numa zona muito central: Lavender Street. Daqui, se com energia e algum fogo nos pés, posso chegar a pé ao centro, passando por áreas residenciais pitorescas, como a Little India e a Arab Quarter.
Quando cheguei, há 3 dias, fui com a Luísa em caminhada pelas ruas circundantes do hotel. Vinda  de uma cidade como Jacarta, senti-me imediatamente encantada e relaxada. Bebemos uma Tiger, a cerveja nacional, numa esplanada cheia de locais a beber o mesmo que nós. Por ali, encontrámos uma bela igreja católica, a Igreja de São José, fundada por portugueses vindos de Macau no século XIX.







No dia seguinte fomos ao Colonial District, que será como que o centro histórico da cidade, com seus edifícios imponentes neoclássicos da era colonial britânica. Um canal do rio Singapura divide aqui a cidade. Atravessámos uma das pontes (maciça e móvel) e fomos diretas ao fantástico Asian Civilisations Museum.


Um museu delicioso, de 3 pisos, que revela de uma forma muito interativa a história de toda a Ásia do Sueste, com especial enfoque no arquipélago malaio. Na Europa é raro encontrar museus como os que tenho encontrado pela Ásia: tão dinâmicos! Ali prevalece aquela concepção clássica e passiva de museu, como um mostruário. Neste museu, como no Museu Nacional de Singapura ou mesmo no Museu de Macau, há vida para além do e mesmo no material supostamente inerte que é exposto. Na verdade, a arte dialoga connosco e o museu assemelha-se a um parque de diversões do intelecto. Regressando ao Asian Civilisations Museum - a luminosidade é ténue e há um cuidado imenso para evitar o excesso de luz que poderá devassar uma obra de arte. Os jogos de luz e sombra tornam o ambiente inquietante e sedutor, e sentimo-nos noutro mundo. Há uma aura de sagrado, de precioso, de único e de terno - em cada peça exposta.

Há muitos recantos de descanso, acolhedores, onde podemos repousar enquanto continuamos a beber da fonte de conhecimento: por todo o museu há painéis audiovisuais que transmitem testemunhos de pessoas comuns da cidade ou lições de professores universitários sobre o tópico em questão naquela divisão do museu.
Depois de almoçarmos, apanhámos o metro e fomos até à Orchard Road - longa avenida de comércio, onde se encontram as lojas de alta costura e de marcas prestigiadas. Senti-me dentro do filme Blade Runner. Mastodônticos centros comerciais, futuristas, com suas fachadas em tela LED ou afins. Fomos ao Takashimaya, um centro comercial japonês, onde fica a maior livraria onde já estive: uma Kinokunya fantástica, onde deixei uns bons dólares. Passámos lá mais de 3 horas.
No regresso a casa, fomos ainda ao 70.º andar do Swissôtel - The Stamford Singapore, onde bebemos umas Kilkenny no bar City Space, com uma vista deslumbrante sobre a cidade. É uma construção desconcertante, e eu senti-me como que a flutuar dentro de uma bolha gigante suspensa no ar. É  mais ou menos assim que uma provinciana portuguesa se sente por certas cidades da Ásia...

mais Pramoedya



Acabei de ler, há uns dias, o primeiro romance do quarteto "The Buru Quartet" do grande romancista indonésio Pramoedya Ananta Toer. Chama-se This Earth of Mankind e Pramoedya contou-o, oralmente, aos seus colegas prisioneiros na ilha de Buru, no arquipélago das Molucas, na Indonésia - porque lhe era negado o uso de papel e caneta na prisão. Durante o regime de Suharto na Indonésia, Pramoedya foi prisioneiro político durante 14 anos nesta ilha pelo seu suposto "comunismo".

Esta tetralogia narra a história de uma revolução: a revolução pela liberdade do ser humano (mais concretamente, a revolução contra qualquer tipo de colonialismo).

Como me aconteceu com os anteriores livros que li de Pramoedya, devorei. É um verdadeiro contador de histórias e imagino como será delicioso lê-lo no original indonésio... Há de udo: há uma infância que não é vivida - orfandade espiritual e maturidade precoce, à Dickens (a criança independente) e à Camilo Castelo Branco (a criança hipersensível votada à tragédia); há inquietude existencialista, à Dostoievsky; há amor proibido por espartilhos sociais, à Jane Austen; há traição, mudança de carácter, loucura e bordéis, um pouco à Hitchcock (a desconfiança e a inquietação) um pouco à Fritz Lang (a psicanálise); há denúncia social, à Brecht (muito fria e directa, sem o humor de um Eça de Queirós); há solidariedade comovente, à Capra; há descrição de costumes e tradições, à Alexandra David-Néel; há erotismo discreto (como quando calam os "fuck" e os "fucking" e os "mother fucker" nos filmes americanos que passam nos canais indonésios, pois há censura), onde a omissão torna a cena profunda e espantosa - inquietante, à Selma Lagerloff e também à Kafka; há espontaneidade, variedade na narração, objectividade, diarística, à voz-off de filme noir; há a suprema força feminina (a mulher inteligente, lutadora e instintiva), à Agustina Bessa-Luís.

Estou muito feliz por ter descoberto este meu novo Autor de cabeceira.

Black Portuguese Church - Gereja Portugis


This sunday morning i decided to visit, for the first time, an important building of Jakarta - for its historical and architectural richness: the Gereja Protestan di Indonesia bagian Barat, Jemmat "Sion", or "Gereja Portugis" - as it was once known. This morning i went to the Black Portuguese Church, the protestant church "Sion", in Kota - the historical centre of Jakarta.

This is the oldest church in the city and the oldest building in Jakarta which is still used for its original purpose.

I felt very inspired while visiting this place, for many reasons: because on sundays mornings i'm specially sensitive; because this building has to do with the "portuguese" remains in this wide and metropolitan city; because it is a beautiful place - well kept, still shining, a cozy corner; because i was surrounded by peaceful and welcoming people; because i heard wonderful christian chants in indonesian; because it's always moving for me to be in a place where i can breathe history in Jakarta, which is not dirty or ruined, where i find people who care for the place where they are and have consciousness of its importance.

The church was built according to the plans of Ewout Verhagen, from Rotterdam, in 1693, and it was finished in 1695. It became a very fashionable church, though built for the poorer section of the Portuguese speaking population in the then knwon Batavia.

Baroque pulpit, work of H. Bruijin, belongs to the original furniture of the church (1695).
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On the left, one of the four big chandeliers, made of yellow copper, with reflectors in the force of shields with the coat-of-arms of Batavia. It dates from the end of the 17th century._____________________________The original organ, with its rich carvings, was lent by the daughter of Rev. Maurits Mohr in the 18th century and is now out of use.
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Who were these people - the portuguese speaking population of Batavia, in the 17th century?

Before the Dutch appeared in Indonesia (1596), the Portuguese had already established a network of harbour towns controlling the trade between the Spice Islands and Europe. In order to conquer and to mantain its monopoly on spices and other profitable trade, the Dutch East India Company (VOC) attacked the portuguese in the East wherever they had established trading posts, forts or towns, for instance, India, Sri Lanka, Malaya, China, Japan and Mollucas. These Portuguese, who had arrived in Asia a full century before the Dutch founded Batavia (1619), had created a vast population of "Eurasians"...

In 1641 Malacca, once a trade emporium of Portuguese merchants, fell into the hands of the Dutch, as many other ports in India and Ceylon. From these places the Dutch brought many prisoners to Batavia. The "white" Portuguese, especially the richer ones, settled well inside the walls of the city, in elite quarters of Batavia, and started to have a privileged relation with the dutch elite; but the poorer prisoners, and those bought as slaves by the Dutch, lacked the means to live inside the walls - they had portuguese names (inherited from their portuguese godfathers on catholic baptism) but hardly much portuguese blood. Among them were some Malays, but most of them were Bengalis and Ceylonese. The Dutch granted them liberty on condition that they become members of the Dutch Reformed Church. Those who converted and became protestants (almost all), and therefore free from slavery, were called Mardijkers or "the liberated ones".

In spite of changing their confessed religion, the Mardijkers didn't change their language. Thus, in the 17th century and partly also in the 18th century, the most common language in Batavia was a kind of portuguese mixed with many malay words. Some protestant ministers had even to learn portuguese in order to serve this growing community. In fact, portuguese still was the lingua franca to Asia, though Portugal had since long become powerless.

It was for this community, the Black Portuguese Community, that the De Nieuwe Portugeesche Buitenkerk, as it was called in dutch (meaning: "Portuguese church outside the walls") was built for.



And today there i was, not as a white portuguese, but as a Mardijker in hearth, to pay tribute to all those who kept the portuguese language alive for so many years in this remote far east city of the world...

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Sources: Ronal Daus, Portuguese Eurasian Communities in Southeast Asia; Adolf Heuken, "Portuguese Remains in Jakarta" in Indonesia - Portugal, Five Hundred Years of Historical Relationship.